
Recentemente, estive na Argentina para uma viagem de lazer entre Buenos Aires e Mendoza. Como em muitas viagens, o lazer veio acompanhado de observação — e o que vi me provocou uma série de reflexões econômicas, sociais e até institucionais.
A crise argentina é real, mas bem diferente da brasileira. E isso ficou ainda mais claro ao caminhar por avenidas largas, bairros bem estruturados e vinícolas organizadas com padrão internacional. A Argentina vive um momento de ajuste severo, mas com nuances que, por vezes, contrastam com a nossa realidade no Brasil.
1. O poder de compra e a percepção de bem-estar econômico
Durante muito tempo, a Argentina foi percebida como um destino acessível para brasileiros. Essa vantagem relativa de preços era sustentada por uma combinação de inflação local elevada, desvalorização do peso e um sistema de câmbio múltiplo — o que favorecia o consumo, especialmente em turismo, alimentação e bens importados.
Contudo, essa dinâmica se inverteu. A reestruturação cambial e o processo de normalização da economia argentina, somados à desvalorização do real frente ao dólar, alteraram significativamente a paridade de consumo percebida. Atualmente, os preços em Buenos Aires superam, com frequência, os praticados em grandes cidades brasileiras — especialmente em itens como alimentação fora do lar, bebidas, vestuário e serviços pessoais.
Mais do que uma mudança pontual, isso revela uma deterioração do poder de compra relativo dos brasileiros no exterior. Mesmo com inflação sob controle no Brasil, a estagnação da renda real e o aumento dos preços domésticos comprimem a capacidade de consumo da população. Na prática, a experiência cotidiana mostra que o brasileiro perdeu margem de acesso a bens e serviços que, até recentemente, eram considerados mais baratos fora do país.
Esse fenômeno reforça que a análise do poder de compra não deve se restringir a indicadores agregados. A percepção de bem-estar econômico é determinada por múltiplos vetores — entre eles, o câmbio, a inflação acumulada, o custo de vida urbano e a dinâmica dos preços relativos. E, nesse contexto, tanto Brasil quanto Argentina enfrentam realidades desafiadoras — ainda que por vias distintas.
2. Crise social: duas realidades distintas
A Argentina viveu, em 2023, uma inflação de 211,4% ao ano. Em janeiro de 2025, o índice caiu para 84%, e em março recuou novamente para 55,9% ao ano, mesmo com uma aceleração pontual da inflação mensal para 3,7% (INDEC).
Esse recuo não foi sem custo:
•O PIB caiu 1,7% em 2024;
•Subsídios foram cortados, obras públicas paralisadas e o repasse aos estados suspenso;
•A pobreza atingiu 52,9% no 1º semestre de 2024, e caiu para 38,1% no 2º semestre, ainda assim afetando mais de 11 milhões de pessoas.
Apesar do choque fiscal e da crise social latente, nas ruas de Buenos Aires não se vê o mesmo grau de vulnerabilidade ou insegurança presente em muitas capitais brasileiras. Em parte, isso se explica por um índice de criminalidade significativamente menor: segundo dados da ONU, a taxa de homicídios no Brasil é cerca de quatro vezes maior que a da Argentina — um dado que impacta diretamente na qualidade de vida urbana e na percepção de segurança.
Já Mendoza apresenta um exemplo de desenvolvimento setorial bem articulado — em especial no enoturismo, com forte integração entre o setor público e a iniciativa privada. Mesmo com instabilidades macroeconômicas, há espaços de resiliência e organização social bem estabelecida.
3. O custo financeiro de produzir: Brasil vs Argentina
Brasil
•Taxa Selic em março/2025: 14,25% ao ano
•Inflação esperada (12 meses): 5,0%
•Juro real: 9,25% ao ano, o 4º maior do mundo, segundo a CNN Brasil
A alta da Selic tem como objetivo controlar a inflação e sustentar o câmbio, mas também encarece o crédito produtivo e inibe o crescimento — afetando diretamente pequenas e médias empresas.
Argentina
•Taxa básica de juros (jan/2025): 29% ao ano
•Projeção BBVA para fim de 2025: 24% ao ano
•Inflação acumulada (12 meses até março/2025): 55,9%
A inflação está caindo, mas ainda elevada. A política monetária foi afrouxada como parte de uma estratégia de reancoragem da moeda e estímulo à retomada econômica.
4. Uma economia em transição, um país em reconstrução
A Argentina vive um momento de transição econômica sem precedentes. Após décadas marcadas por desequilíbrios fiscais, inflação crônica e sucessivos controles cambiais, o governo Javier Milei iniciou um programa de ajuste estrutural profundo, com medidas que miram o reequilíbrio macroeconômico por meio de um choque liberal.
Nos primeiros meses de mandato, Milei:
•Eliminou ou cortou mais de 50% das transferências federais para províncias;
•Suspendeu obras públicas em andamento;
•Reformulou subsídios a energia e transporte;
•Enviou ao Congresso a chamada “Lei Ônibus”, propondo reformas amplas em marcos regulatórios, direitos trabalhistas e privatizações;
•Editou decretos de desregulamentação econômica;
•E adotou a meta de déficit fiscal zero, com cortes severos em saúde, educação e aposentadorias.
Inicialmente, o governo também manteve o controle cambial existente, o chamado cepo. Mas em abril de 2025, deu um passo decisivo: extinguiu o cepo e implantou um novo regime de bandas, com cotação flutuando entre 1.000 e 1.400 pesos por dólar, permitindo maior liberdade na compra de moeda estrangeira por pessoas físicas.
O movimento foi acompanhado por um novo acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI): um empréstimo de US$ 20 bilhões, com US$ 12 bilhões já desembolsados para reforço das reservas cambiais. O programa inclui:
•Uma âncora fiscal forte;
•Transição para maior flexibilidade cambial;
•Compromissos de avanço em reformas estruturais e disciplina monetária.
Segundo o FMI, trata-se de uma aposta na construção de uma economia “mais aberta e orientada para o mercado”. Para Milei, é a primeira vez que a Argentina combina, simultaneamente, ordem fiscal, monetária e cambial.
Apesar do entusiasmo do mercado e do apoio de organismos multilaterais, o impacto social é severo: a inflação acumulada, os cortes em serviços essenciais e a retração da atividade econômica alimentam protestos e tensão social.
Enquanto isso, o Brasil, embora com desafios estruturais semelhantes, preserva estabilidade cambial, reservas robustas e autonomia monetária. No entanto, também enfrenta dificuldades para crescer, gerar empregos e expandir o crédito. Ou seja, ajuste macroeconômico é necessário, mas não suficiente — é preciso criar ambiente favorável ao investimento produtivo e ao desenvolvimento social sustentável.
5. Brasil: desafios diferentes, problemas semelhantes
O Brasil enfrenta entraves estruturais:
• Um sistema tributário ainda complexo;
• Burocracia excessiva no acesso ao crédito;
• Juros reais altíssimos, mesmo com inflação controlada.
A reforma tributária e uma revisão do marco legal do crédito, conhecido como Marco Legal das Garantias, estabelecido pela lei 14.711/23, são essenciais para destravar o crescimento e permitir que quem produz tenha acesso a capital em condições razoáveis.
6. Salário mínimo: Brasil x Argentina e o verdadeiro poder de compra
A conversão do salário mínimo em dólares é um termômetro simbólico do poder de compra internacional — mas, isoladamente, pode induzir a interpretações equivocadas. Ainda assim, os números recentes revelam uma mudança histórica.
Brasil
• O salário mínimo nominal subiu de R$ 1.412 para R$ 1.518 em 2024.
• No entanto, com a desvalorização acumulada de quase 25% do real frente ao dólar, o valor em moeda norte-americana caiu de US$ 291 para US$ 247.
Argentina
•O salário mínimo nominal passou de 156 mil para 272 mil pesos, uma alta de 76%.
•Em dólares, subiu de US$ 157 para US$ 228, reflexo de medidas de ajuste fiscal e momentânea valorização do peso no mercado oficial.
A diferença entre os dois mínimos caiu para menos de US$ 20, uma convergência que parecia impossível até pouco tempo. Em 2021, por exemplo, o salário mínimo brasileiro em dólares superava o argentino em quase 100%.
Mas o dado em dólares esconde nuances importantes:
•No Brasil, o salário mínimo ainda preserva maior estabilidade de compra em moeda local, especialmente considerando inflação controlada e rede de proteção social.
•Na Argentina, o valor nominal elevado convive com inflação acumulada superior a 200% no último ciclo anual, o que compromete o poder de compra interno real, mesmo que em dólar o número aparente tenha melhorado.
Além disso, o custo de vida nas capitais argentinas disparou. Como analisado anteriormente, os preços em Buenos Aires já superam os de muitas cidades brasileiras, comprimindo a capacidade de consumo da população, especialmente nos segmentos de menor renda.
Por fim, há o componente estrutural: o salário mínimo no Brasil está mais vinculado a benefícios previdenciários e políticas públicas do que na Argentina — onde sua função é mais referencial do que efetiva.
Em resumo: a equiparação dos salários mínimos em dólares revela mais sobre a volatilidade cambial e o desequilíbrio macroeconômico de ambos os países do que sobre um real ganho de bem-estar. É um alerta: estabilidade de preços, crescimento da produtividade e preservação do valor real da renda são os verdadeiros pilares do poder de compra.
7. O preço da memória: Quilmes, café e a inflação que todos sentimos
Para quem gosta de futebol (como eu), visitar a Bombonera é um roteiro obrigatório em Buenos Aires.
Numa loja de souvenirs nos arredores do estádio, ao comprar uma cerveja Quilmes, o vendedor comentou:
“Pouco tempo atrás, essa cerveja custava 400 pesos. Hoje está 4.500.”
Convertendo: cerca de US$ 3,75 ou R$ 22,50 — bem mais caro do que a média em bares ou estádios brasileiros, onde o preço gira entre R$ 10 e R$ 15.
O mais impressionante? Ele não soube dizer exatamente quando esse aumento ocorreu. A inflação acumulada se instala devagar, até que a memória de preço denuncia: algo mudou.
E o Brasil também vive isso. Produtos do dia a dia — como o café — sofreram aumentos expressivos. Um pacote que custava R$ 4,00 pode hoje superar R$ 18,00. Mesmo com inflação controlada nos indicadores oficiais, o bolso percebe a diferença.
Inflação não é só número. É sensação — e ela é sentida na gôndola, na xícara e na memória do consumidor.
8. Brasil e Argentina: juntos somos mais fortes?
Brasil e Argentina movimentaram mais de US$ 24 bilhões em comércio bilateral em 2023, segundo a ApexBrasil.
A integração entre os dois países é estratégica — seja via Mercosul, nas cadeias produtivas ou na segurança energética e alimentar regional.
Uma Argentina estável favorece o Brasil. Um Brasil forte impulsiona a recuperação da Argentina.
9. Conclusão – O que esperamos para os próximos anos
A viagem termina, mas a reflexão permanece:
Será que o Brasil está pronto para crescer com equilíbrio, responsabilidade e inclusão?
Será que aprenderemos com a história recente dos nossos vizinhos?
A Argentina tenta reconstruir a confiança após décadas de desequilíbrio.
O Brasil ainda posterga reformas cruciais — e paga o preço disso com juros altos, crédito travado e baixa competitividade.
Não se trata de comparação — mas de aprendizado mútuo.
Que possamos crescer juntos, com diálogo, inteligência econômica e mais respeito por quem gera valor real: quem empreende, emprega e produz.
*Eduardo Norões é economista, especialista em estruturação de projetos para captação de recursos e obtenção de incentivos fiscais, e sócio-diretor da B2B Soluções Empresariais.